Podcast EP #01
Quem cria?
INTRODUÇÃO
<<<<< Trilha Sonora: Chocalho e Clave >>>>>
[00:01]
Narração Luiza: Esse é um podcast que busca desnaturalizar as violências cotidianas, aprofundando reflexões. Talvez algumas histórias aqui te toquem pessoalmente, pois são as histórias de todos nós. Fica aqui então um aviso de gatilho possível.
[00:24]
Você já parou para pensar na história das infâncias brasileiras? Aqui convidamos para esse mergulho. Mas atenção, em muitos momentos, essa é uma história de terror.
Começamos essa aventura com uma pergunta: Quem cuida?
<<<<< Trilha Sonora: Apitos, violão e percussão corporal >>>>>
<<<<< Som de cidade, barulho de moto, carros, buzinas e avenida >>>>>
[00:51]
Narração Luiza: Era uma vez uma encruzilhada grande. São cinco esquinas cheias de olhares. Território em disputa, batuque de latas. Ali, no centro de São Paulo, a Rua da Glória vira lava-pés. Sobraram poucas construções de época: cinco casarões. Será que eles viram? Será que eles lembram? Não é nome à toa. Ali era lugar mesmo de lavar o pé, se quisesse entrar na cidade e de preferência, calçando o sapato.
[01:24]
Mas e quem não tinha sapato?
[01:30]
Agora é 2024, uma segunda-feira, meio-dia e na Roda Glória com Lavapés, praticamente todas as portas de aço estão fechadas, exceto o prato feito por R$12, o chaveiro Kennedy, o rei do glicério e suas carnes penduradas para venda e os recicláveis. As latas passam, batem e acumulam no grande saco preto. É ponto para negociar alumínio. Espaço. Memória.
[01:57]
O número 955 é um desses casarões de cara europeia, virada do século XIX para o XX, janelas grandes, enfeites de gesso, um brasão desgastado que marca o topo da casa. Na parede bege clara da parte alta da casa, está uma placa toda azul, um ponto de memória paulistana. Ela anuncia que ali morou Madrinha Eunice, matriarca do samba paulistano e fundadora em 1937 da Lavapés, primeira escola de samba da cidade. Mas, não foi exatamente ali que Madrinha Eunice morou não. A parte de baixo da casa foi criada para ser um depósito, tem janelas pequenas com grades e uma pintura mais escura, esverdeada, marcada hoje por uma tinta cinza que cobre só as letras de uma pichação. Ali morou Madrinha Eunice, ou Deolinda Madre, seu verdadeiro nome.
[02:55]
Durante muitos anos ela viveu, trabalhou, fundou a Lavapés e ainda criou mais de 40 crianças na parte de baixo desse casarão. Isso mesmo, com dois quartinhos e um quintal grande, Madrinha Eunice adotou e criou mais de 40 pessoas, filhos de famílias que por algum motivo não podiam dar conta deles.
[03:18]
Ninguém atende a campainha. No corredor vazio, em 2024, tem ainda muitos brinquedos de criança e alguns gatos que relaxam ao sol. No Google Maps, dá pra ver fotos da casa de até dois anos atrás. Foi assim que a gente descobriu que aquela pichação mal coberta um dia já gritou: Foda-se a polícia!
<<<<< Trilha Sonora: Apitos, violão e percussão corporal >>>>>
[03:41]
Narração Luiza: Então bora subir a Rua da Glória? Esse é o mesmo caminho que Madrinha Eunice fazia lá nos anos 40 pra vender seus limões na “cidade”.
[03:50]
Alícia | Equipe Cria Coragem: Com licença, com licença, boa tarde. Tudo bem? Licença, a senhora mora aqui? Eu estou pesquisando a história da madrinha Eunice, aí estou vendo se as pessoas que moram por aqui conhecem essa história, tem alguma relação. A senhora nunca ouviu falar?
[04:07]
Narração Luiza: Próxima esquina: Conselheiro Furtado. Ali, o saquinho com 30 limões hoje custa R$2. Essa esquina é onde começam também aquelas luminárias de estilo japonês, bem marcantes no bairro da Liberdade. São muitas as marcas anunciadas da memória da migração japonesa. Seguimos. Rua Américo de Campos, esquina do primeiro distrito policial de São Paulo, construído exatamente nos mesmos anos 40, nenhuma coincidência. Adiante, enormes viadutos, o Pikachu se destaca amarelo e gigante, acena e faz fotos com todos. Chegamos ao nosso destino final: A Rua da Glória esquina com a Rua dos Estudantes. De pé, naquela esquina, dá para ver também o Cemitério dos Aflitos. Você conhece essa história?
<<<<< Trilha Sonora: Chocalho e Clave >>>>>
[05:06]
Narração Luiza: Agora é uma da tarde e o cheiro de fritura sobe. É que nessa encruzilhada, Chibana disputa com o Cacique Azul os clientes do prato feito. Apenas uma das quatro esquinas ali não oferece comida, é uma construção antiga que ocupa toda aquela quadra. Sabemos o que era, mas não o que é hoje.
[05:31]
Alícia | Equipe Cria Coragem: Com licença, boa tarde, tudo bem? O que funciona aqui nessa esquina?
[05:33]
Segurança: Aqui é uma faculdade de direito.
[05:35]
Alícia | Equipe Cria Coragem: Faculdade de Direito?
[05:36]
Segurança: Vai até a esquina, tudo isso é da Faculdade de Direito.
[05:39]
Alícia | Equipe Cria Coragem: Ah, que legal, porque eu soube que a Santa Casa de Misericórdia era aqui.
[05:44]
Segurança: Mas há muitos, muitos anos, né? Na época o diabo era menino.
[05:47]
Alícia | Equipe Cria Coragem: Que época era essa?
[05:52]
Narração Luiza: Aqui, até o fim do século XIX, funcionava a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Esse muro, hoje tão vedado, já teve uma brecha. Era a Roda dos Expostos, dispositivo implementado no mundo todo naquela época para que instituições católicas acolhessem crianças doadas, filhos de famílias que, por algum motivo, não podiam dar conta deles. Setecentos metros e poucos anos separam as crianças deixadas na Roda dos Expostos daquelas criadas por Madrinha Eunice.
<<<<< Trilha Sonora: violão e percussão corporal >>>>>
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[06:36]
Narração Luiza: Bem-vindos ao nosso podcast. Eu sou Luiza Akimoto, pesquisadora e sonoplasta do Cria Coragem e vou conduzir essa caminhada sonora. É uma honra recebê-los aqui para a gente poder conversar um pouco.
[06:47]
Como vocês descobriram lá no nosso teaser, somos uma equipe dedicada às reflexões sobre a proteção à infância. Para falar de verdade sobre isso e buscar mudanças concretas, é preciso mergulhar em temas densos. Nem sempre estaremos dentro da nossa zona de conforto, mas a estrada fica mais fácil se caminharmos juntos. E se o assunto é difícil, Cria Coragem.
[07:27]
Entrevistada Elisângela – Pesquisadora: Poucas pessoas conhecem esse museu e é lindo, é um pecado.
[07:34]
Luiza | Equipe Cria Coragem: Essa é a roda?
[07:35]
Entrevistada Elisângela – Pesquisadora: Essa é a roda! Eu não gosto de tocar, mas todo mundo tocava essa roda. Aí aqui colocava um bebezinho, um enxoval, uma carta, o que você quisesse. E girava, aqui tinha uma campainha, um sino, você tocava..
[07:55]
Narração Luiza: Estamos numa sala do Museu da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. É um prédio muito antigo, de 1884. A sala está dividida naquele velho esquema de meninas de um lado e meninos do outro, sabe? Na direita, pinturas de freiras católicas, irmã Luísa, irmãs Marias, e na esquerda, doutor Celestino e doutor Arnaldo as encaram. No centro daqueles olhares está a peça mais importante e mais visitada deste museu: a Roda dos Expostos.
[08:32]
Além dos quadros pendurados nas paredes, alguns documentos e objetos circulam a roda, um chocalho, fotos antigas de crianças com enfermeiras e o importante livro dos expostos, registro oficial de cada criança depositada naquela estrutura de madeira. Com data, nome de batismo, geralmente do santo daquele dia e também alguns bilhetes, deixados junto das crianças, a única pista do vínculo anterior.
[09:01]
Entrevistada Elisângela – Pesquisadora: Trecho de uma carta deixada junto a um bebê na roda: “Roga-se batizar esta criança, que é de sexo masculino, com o nome de Ângelo, que nasceu às 5 horas do dia 22 de abril de 1914. Roga-se também conservar. Essa carta, que logo que desapareçam… certas circunstâncias …será procurada… Pede-se entre esta criança… que é.. um… pré… de… este.”
[09:32]
Entrevistada Elisângela – Pesquisadora: O que aconteceu? Vocês conseguem ver aqui, quem está ouvindo não vai saber, mas vocês estão vendo aqui que falta uma parte dessa carta. E este corte foi intencional. E falta um pedaço do texto por conta disso. E aqui está dizendo, né? Conservar essa carta, porque quando a pessoa vier resgatar o bebê, ela vai trazer a parte que falta da carta.
[09:56]
Narração Luiza: Essa é a fala da Elisângela Dias, autora do livro As Crianças das Rodas dos Expostos. À direita da roda chama a nossa atenção o brasão da Santa Casa. Embaixo dele, a Bíblia aberta mostra o Antigo Testamento.
[10:12]
A roda é famosa e junto dela tem uma reportagem da Folha de São Paulo na moldura, com data de 1998, o título da notícia diz em letras garrafais: “Sou filha de um pecado sem perdão”.
<<<<< Som da roda de madeira e sino >>>>>
[10:37]
Entrevistada Danielle Franco | Instituto Bixiga: A roda dos expostos era uma estrutura cilíndrica, circular, que ficava no muro das Santas Casas de Misericórdia ou das Casas Pias, ou nas janelas dessas instituições. E a pessoa deixava a criança que queria abandonar, girava a portinhola e essa criança ia para o outro lado do muro ou da janela, tocava uma sineta, a rodeira vem, batiza imediatamente e então essa criança entra para o sistema da roda.
[11:11]
Narração Luiza: Essa é a voz da Daniele Franco da Rocha, historiadora do Instituto Bixiga. Você pode conferir a entrevista completa na segunda temporada do nosso canal no YouTube. O link está na descrição do podcast.
[11:24]
Foi muito importante para nós entrevistar essa equipe que há anos oferece o curso História Social da Infância e Juventude no Brasil. A equipe do Instituto Bixiga ensinou pra gente que formar equipes de assistência social com a história do Brasil levava a tomadas de decisões mais conscientes, voltadas de fato para uma defesa da infância.
[11:46]
Entrevistada Danielle Franco | Instituto Bixiga: A questão da criança chamada, abandonada, enjeitada, termos fortes, termos perversos, pejorativos, que vão circundar essa noção de infância no Brasil. Então, já desde 1521, as câmaras municipais vão ser responsáveis pela criança até os oito anos de idade, ou seja, seja uma criança escravizada, que fica com o seu senhor, ele então é responsável até os oito anos de idade ou a criança chamada livre ou liberta. Essa criança é responsabilidade da Câmara. E a criança chamada abandonada, enjeitada, vai ser um dos focos da política.
[12:26]
A Roda dos Expostos nasce no berço do Vaticano, da Igreja Católica Romana, em 1203, pelo Papa Inocêncio III. A ideia era justamente acolher as crianças que, inclusive, se não forem batizadas, se tornam pagãs e morrendo elas vão parar no limbo e passar a eternidade no limbo. Então a ideia da roda vem conjugada, inclusive, com uma associação à religião e ao colonialismo, né? Mas a roda chega em Portugal em 1490 e vem para o Brasil em torno do século XVIII, 1700. Só que as santas casas eram responsáveis por todo um rol de assistências, eram hospitais, enterramentos dos desvalidos, dos pobres, eram várias funções, inclusive o cuidado com a criança enjeitada. Então o que a gente vai ver no Brasil colonial, que é colônia, voltada para fora e escravista, são expressões disso também na história da infância. Uma história tão pouco contada, tão pouco retratada, tão pouco estudada.
[13:32]
Narração Luiza: A equipe do Instituto Bixiga foi a primeira de um grupo de cinco historiadores que entrevistamos. Buscávamos uma resposta: Por que o abuso sexual na infância é tão naturalizado no Brasil? Ninguém no mundo tem uma fala curta ou fácil para isso, mas algo nos chamou a atenção, algumas pautas idênticas que apareciam em todas as entrevistas.
<<<<< Colagem de falas curtas citando a roda dos expostos >>>>>
[13:57]
Narração Luiza: Esse objeto histórico era um ítem que surgia repetidamente na contação dessa história. Sentíamos que tinha algo ali, um símbolo, para além de um objeto.
[14:21]
Entrevistada Cláudia – Historiadora: Interessante como a religião católica foi dominante e hegemônica durante muito tempo no Brasil. E quando você vai pensar, até hoje, é ela que dita um pouco…
[14:39]
Narração Luiza: Essa é a voz de Cláudia Regina Alexandre, jornalista, professora e doutora em ciência da religião.
[14:47]
Entrevistada Cláudia – Historiadora: E aí a gente vê que a Igreja Católica ditou por muito tempo e isso ainda é um fantasma na educação das crianças, porque essa educação católica está nos livros escolares ainda, ela está nas escolas brasileiras. Então, como você senta, não pode abrir a perna, a menina, o menino, como é que tem que se comportar, isso é muito católico.
[15:13]
Trechos de programas de televisão:
Silvio Santos: Você vai continuar sendo católica, mas você vai ler a Bíblia? Já leu a Bíblia ou não?
Maísa: Não.
Silvio Santos: Quem é que leu a Bíblia pra você?
Maísa: Minha mãe que leu.
Ana Maria Braga: Diz que Deus criou as mães…
Xuxa: Uma ótima tarde pra você, muita saúde, que Deus te proteja e muito, muito, muito, muito, muito amor…
[15:34]
Entrevistada Danielle Franco | Instituto Bixiga: O sobrenome que era dado a todo mundo que era posto na roda era “Exposto”. Então, Daniela Exposta, Natália Exposta, João Exposto, ou seja, você carregava o estigma e a marca da roda para toda a sua história.
[15:50]
Narração Luiza: A roda foi desativada dos muros da Santa Casa de São Paulo em 1950. Mesmo sem esse dispositivo, o último registro do livro dos expostos é de 1960. São muitos os motivos que levam as famílias a abandonar uma criança, o que não é nada fácil. A pobreza, a fome, uma comunidade vulnerável e até o julgamento sobre uma gravidez fora da chamada “família tradicional”.
[16:20]
Aquela cidade, miserável e destruída pelas relações coloniais, gerou quase 5 mil órfãos institucionalizados só pela Santa Casa de São Paulo, entre 1825 e 1960. A gente tentou encontrar alguns dos sobreviventes da roda e ouvir um pouco mais das suas histórias. Como a roda foi desativada nos anos 50, qualquer contato da nossa equipe seria, obviamente, com uma pessoa já em idade bem avançada. Encontramos informações sobre quatro desses sobreviventes. Magali, a supervisora do Hospital Dom Pedro II, na Zona Norte de São Paulo, nos conta que José Alberto, Maria Celina Alves e Damaris Felipe dos Santos viveram e faleceram sob os cuidados da equipe do local, vinculado também à Santa Casa. Eles passaram a vida inteira institucionalizados. Conversamos ainda por e-mail com Maria Beatriz Fagundes, filha de Milton Fagundes, também sobrevivente da roda, e Maria respondeu assim: “Infelizmente, meu pai faleceu em 12 de maio de 2023, sem nunca ter tido a felicidade de conhecer a história dos seus próprios pais”.
[17:36]
Entrevistada Elisângela – Pesquisadora: Minha sensação, não estatística, mas o meu olhar de milhares de documentos no Brasil e fora do Brasil, eu vejo que uma grande parcela dos bebês faleceram aqui mesmo, porque já vinham doentes. E, de novo, as condições sanitárias não eram as condições de hoje, apesar de estarem no hospital. Outra grande parcela, eu sinto que acabou não sendo adotada e conseguiu sobreviver por si só, conseguiu uma profissão, se virou e viveu. E sim, teve a parcela dos que foram adotados por famílias abastadas e que tiveram excelentes encaminhamentos e os que foram adotados por famílias não tão abastadas assim e que se tornaram cidadãos comuns e é isso.
[18:33]
Entrevistado Eribelto Castilho | Instituto Bixiga: A gente se importa em termos sociais com o abandono, com a infração e com o trabalho. A própria estrutura do estatuto se preocupa basicamente com a regulamentação dessas três questões. Criança não tem sexualidade, criança não tem nenhum outro aspecto.
[18:49]
Narração Luiza: Esse que vocês ouvem aqui é o Eribelto Péres Castilho, professor e pesquisador do Instituto Bixiga. Ele também oferece a formação em História das Infâncias e Juventudes Brasileiras, junto com a professora Danielle, que já conhecemos. Aqui, ele vai contar um pouco mais sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA.
[19:11]
Entrevistado Eribelto Castilho | Instituto Bixiga: E aí a Constituição Federal, com o artigo 228, declarando a doutrina da proteção integral, vai ser a primeira vez no Brasil, por incrível que pareça, em 1988, que vai declarar juridicamente as crianças como sujeito de direitos. Então todos os direitos que nós adultos temos, ao menos formalmente, as crianças a partir de 1988 vão também ter.
[19:33]
Narração Luiza: 1988! É importante lembrar que essa é a data que marca os 100 anos do fim da escravidão no Brasil. Ao menos no papel, né?
[19:47]
Entrevistado Eribelto Castilho | Instituto Bixiga: Então, direito à convivência familiar. Porque o entendimento nessa área de que lugar da criança é em abrigo, em instituição totalizante… Não, lugar da criança é na família, ou seja, é a primeira vez na história brasileira que as crianças, em termos jurídicos, vão deixar de ser aquele ser tutelado e vão ter reconhecido os seus direitos fundamentais, como todos nós. Essa criança, então, que teoricamente agora está sem escola, não é ela mais que está irregular, agora o direito dela está sendo violado. Se ela é abusada sexualmente, não é ela que é irregular, o direito dela está sendo violado. E aí agora, teoricamente, a intervenção do Estado não é mais para regularizar a criança, mas para tirar ela dessa condição de violação de direito.
[20:36]
Narração Luiza: Sim. A lei que determina no Brasil que uma criança tem direitos, como qualquer outro adulto, tem apenas 36 anos. Danielle e Eribelto ainda concluem:
[20:49]
Entrevistada Danielle Franco | Instituto Bixiga: Então, historicamente, a gente vai ver que o corpo ou o domínio sobre o outro, da escravidão, de uma forma geral, vai impactar na nossa sociedade. A gente ter pajens, mucamas. A gente vai ver que a servidão vai, o escravismo vai, às raias do uso do corpo para todas as funções. A violência é a regra do cotidiano no Brasil colonial, no Brasil imperial. E eu vou ser polêmica, no Brasil Republicano. Então, a violência do corpo sempre foi utilizada como uma forma de poder e um poder econômico, cultural, social. Então, eu acho que isso se expressa, inclusive, nas formas como essas crianças foram se colocando na nossa história, até profissionalmente, infelizmente. O que é uma mucama? É uma escravizada que serve sexualmente. O que é uma pagem? Ou seja, ao longo da nossa história, uma história violenta, de um cotidiano violento, em que o patriarcalismo se expressa, o escravismo se expressa, a violência está na nossa vida cotidiana.
<<<<< Trilha sonora: Tantan >>>>>
[22:04]
Narração Luiza: Mas tem outra escola na concentração, se preparando para entrar nessa avenida. Nesse momento, é importante falar novamente do processo de pesquisa. A nossa equipe se perguntava o que era, na época, uma alternativa à roda dos expostos. As crianças precisadas de cuidado, se não acabavam na roda, acabavam onde? Chegamos com um pensamento em Tia Ciata, figura importante e uma das muitas matriarcas do samba. A casa dessa baiana, erradicada no Rio de Janeiro, ali próximo da Praça 11, viu crescer não apenas 15 filhos biológicos dessa líder, de nome original Hilária Batista de Almeida: Tia Ciata. Ela cuidou de muita gente, de crianças a pessoas mais velhas. Foi o Alexandre Kishimoto, nosso pesquisador do Cria Coragem, que nos situou melhor no mapa. Não precisava ir tão longe, era só caminhar algumas quadras para encontrar Madrinha Eunice. E nada, nada na história é coincidência.
<<<<< Som da Escola lavapés | Madrinha Eunice cantando – acervo Mis >>>>>
[23:42]
Entrevistada Danielle Franco | Instituto Bixiga: Então, a historiografia aponta essas ligações da composição, formação desse território afro-indígena. Haja vista aí que esse território é um território cheio de terreiros, de devoção a Chaguinhas, é um sítio arqueológico que está em debate nos dias atuais. Quando a gente pega as crônicas, as literaturas e começa a estudar um pouco mais, mergulhar um pouco mais nas histórias da cidade de São Paulo, e pega as teias, as tramas das formas de convívio e os grupos, do que compunham os focos, ou seja, as casas. Porque falar dessas relações significa não falar apenas de co-sanguinidade, falar de família é mais do que isso, são relações de agrupamento que vão se formando em diversos formatos.
[24:34]
E, no caso, falar de São Paulo, da São Paulo daquele momento, e pensar ao longo da nossa história, é uma cidade feminina, é uma cidade que tem muitas mulheres arrimos de família, pensando no século XIX que é o momento da roda mais forte. E as casas são compostas muito, em boa medida, de agregados. Então essas crianças, muitas vezes, elas viviam comunitariamente, mas também a casa onde elas viviam, elas não tinham vínculo. Era um vínculo social, não era um vínculo de consanguinidade. Então, o que a gente vê nos registros da Maria Odila Leite, por exemplo, “Cotidiano e Poder na cidade de São Paulo”, no século XIX, ela vai falar que a maioria dos fogos eram mulheres ou viúvas, ou mais solteiras, ou filhos ilegítimos.
[25:25]
A composição, muitas vezes, aquelas crianças que estavam lá, elas não tinham, eram agregados, era muito comum a figura do agregado. E principalmente em São Paulo, onde o escravizado era caro. Então, você vai ter a figura do agregado como uma figura central no desenvolvimento daquelas relações sociais do império.
<<<<< som de criança pulando na cama elástica >>>>>
[25:46]
Alícia – Equipe Cria Coragem: Com licença, boa tarde. Desculpe interromper. É aqui a casa da Rose?
[25:49]
Vozerio: Isso, isso.
[25:50]
Alícia – Equipe Cria Coragem: Eu sou a Alícia, vou pedir licença de entrar.
Vozerio: Nós também acabamos de chegar, somos amigos.
[25:56]
Alícia – Equipe Cria Coragem: Eita, que bom. Eu sou a Alícia, muito prazer.
[25:59]
Angela: Prazer, eu sou a Angela.
[26:01]
Narração Luiza: Aqui você ouve uma voz que já apareceu antes. É da Alícia Peres, diretora do Cria Coragem e repórter de campo.
[26:09]
Dona Babita: Eu era muito danada. É.. Aí ela me batizou e eu ficava de casa em casa. Aí ela ia, me catava nas casas e trazia embora.
[26:22]
Angela: E assim, ai se alguém mexesse, ai se alguém mexesse com alguma criança daquele grupo, que a coisa já não são meus, qualquer problema se reporte a mim e não aos outros.
[26:38]
Alícia – Equipe Cria Coragem: Então as crianças estavam protegidas de alguma forma.
[26:41]
Vozes femininas: As crianças sempre tinham proteção. Porque tinha muitas mães, então tinha madrinha, tinha muitas mães, mas sempre tinha uma proteção. Quando não tinha madrinha, tinha as tias. E hoje a criação é diferente. Que acompanhavam aquele grupo.
[26:58]
Narração Luiza: Não foi nada difícil encontrar as crianças criadas por Madrinha Eunice, a Rose é uma delas. Crescida no quintal da madrinha como a sua mãe, foi Rose quem herdou a escola de samba Lavapés. Até hoje ela vive também da cozinha que aprendeu com a avó, vendendo pratos e quitutes saborosos. A Rose mantém a tradicional reza de São João, um dos eventos mais importantes do ano, que Madrinha Eunice conduzia em seu quintal. Rose ainda reza todo o terço, no dia 23 de junho, sob a guarda dos Orixás da avó, que ainda habitam a entrada da casa. Os Orixás, a palha sobre a porta, a comida farta e o samba alto desse dia ainda dividem espaço com muitas crianças e adolescentes. Esses relatos são de crianças criadas pela Madrinha Eunice. Essas crianças cresceram, se desenvolveram e sambaram muito e hoje compõem muitas velhas guardas. Babita, Ângela e Silvinho, que vocês ouvem aqui, foram criados por muitas mulheres, inclusive a Madrinha Eunice.
<<<<< Trecho de Samba enredo da Lava Pés >>>>>
[28:15]
Entrevistada Rosemeire Marcondes: Sejam bem-vindos à família Lavapés, nós que fomos fundados em 1937. Meu nome é Rosemeire Marcondes, sou neta e afilhada de Deolinda Madre, mais conhecida por Madrinha Eunice. Fui criada por ela, não só eu, como outras crianças que tinham na casa também.
[28:38]
Alícia – Equipe Cria Coragem: Quando a gente está falando da história das infâncias, tem essa palavra que vai ser atribuída à sua avó, que é madrinha. Uma palavra super relacionada à infância, por que madrinha Eunice?
[28:53]
Entrevistada Rosemeire Marcondes: Primeiro porque ela batizou 41 pessoas. E que não era também madrinha, mas acabava sendo madrinha porque ela acolhia algumas crianças com mães, como era mãe solteira, ficavam naquele cortiço que a gente morava, a casa grande em cima, os porões embaixo. Então ela tinha dois cômodos onde agregava todo mundo ali dentro.
[29:21]
Narração Luiza: Sim, o nosso episódio começou aí nessa casa. Lembra aquela casa na Rua da Glória, de espaços bem divididos? Pois é, a Rose também cresceu lá. E a Rose, como muitas outras crianças daquela casa, mesmo com tantos desafios e dificuldades, cresceu e foi empoderada para contar a sua própria história, em voz alta.
[29:46]
Entrevistada Rosemeire Marcondes: Madrinha Eunice veio para cá, para São Paulo, aos 11 anos, saiu de Piracicaba para vir ajudar uma tia que estava em “estado interessante”, porque antigamente não falava mulheres grávidas. Depois ela cresceu, estudou aqui, aí ela passa a viver com meu avô nesse local, na Rua da Glória 961, onde é fundada a Escola de Samba Lavapés. Mas antes disso ela fez parte do coro de rádio, fez parte do bloco Baianas Teimosas. ou Baianas Paulistas, foi presidente de time de futebol, então naquele tempo era muito louco: década de 30, Getúlio Vargas, São Paulo começando a crescer, uma mulher negra, pobre, ter toda essa independência e uma mente muito avante de muitos, sabe?
[30:53]
Entrevistado Silvinho – Afilhado de Madrinha Eunice: Ela punha essa escola aí na rua, ela punha essa escola linda… Era linda. Os sapatos, um negócio, o guarda-roupa da Lavapés, só veludo bordado.
[31:08]
Alícia – Equipe Cria Coragem: Como que ela fazia tudo isso, seu Silvinho? Que recurso era esse?
<<<< cama elástica | crianças brincando >>>>>
[31:11]
Entrevistado Silvinho – Afilhado de Madrinha Eunice: Comunidade, né? Costureira, costureira aqui, costureira ali.
[31:17]
Alícia – Equipe Cria Coragem: Sobrou esse tecido aqui, juntou pra comprar aquele ali?
[31:29]
Entrevistado Silvinho – Afilhado de Madrinha Eunice: É, era tudo assim, né? E o nome dela, quando ela chegava numa 25 de março, no Brás, assim, ó, a Madrinha Eunice chegou.
[31:30]
Entrevistada Rosemeire Marcondes: Ela tinha uma firmeza tão grande como líder que eu acho que foi isso, esse lance das crianças, esse lance de ajudar essas mulheres mães solteiras, porque naquela época, muitos homens não trabalhavam, foram alforriados, mas quem fazia o sustento da casa eram as mulheres, como lavadeiras, passadeiras, cozinheiras, quituteiras, enfim, era esse lance.
[31;34]
Narração Luiza: Aqui passamos a palavra novamente para a doutora Cláudia. É importante descrever um pouco mais do currículo dela, é que não buscamos ela apenas pelo seu doutorado em ciência da religião, ela é pesquisadora de samba e religiões de matriz africana.
[32:14]
Entrevistada Cláudia – Historiadora: Quando você fala de Madrinha Eunice, essa presença na cidade de São Paulo, na liberdade, e essa presença como uma mulher, a subjetividade, porque quando a gente vai falar de Madrinha Eunice, a gente sempre vai falar dela relacionada ao samba. Então, a gente tira essa subjetividade, a presença dessa mulher marcante que foi Madrinha Eunice. Ela tem uma presença muito importante na questão da história das escolas de samba de São Paulo, porque ela é a primeira mulher negra que fundou uma escola de samba em São Paulo. Ela é a primeira liderança negra que vai discutir, num ambiente estritamente machista, a expressão e a presença da cultura negra naquele caldeirão cultural da cidade de São Paulo, daquela época de 30. Então, eu acho que a gente tem muito o que falar de Madrinha Eunice. E trazer essa coisa da maternagem, da maternidade, do feminismo, da presença feminista mesmo, ativista de Madrinha Eunice, eu acho que é muito importante. Essa relação da Madrinha Eunice com a territorialidade, a partir desse feminino negro, da forma em que Madrinha Eunice dá dinamismo a esse legado de mulheres negras na sociedade brasileira e como mulheres negras foram importantes para ressignificar redes de sociabilidade, de solidariedade, de cumplicidade. E como foi importante a presença de uma mulher como Madrinha Eunice numa região onde foi negado ao negro o seu próprio território.
[33:58]
Narração Luiza: A Danielle do Bixiga ainda completa essa ideia.
[34:01]
Entrevistada Danielle Franco | Instituto Bixiga: O Lavapés, que hoje a gente conhece como Glicério, como Liberdade, que já foi o Distrito da Glória, já foi a Chácara da Glória. Esse Lavapés como a identidade popular resiste, que vem do rio Lavapés, que corre ali naquele território. Nesse território de tradição das lavadeiras, do tamanduateí, da várzea do carmo, das lavadeiras, das amas de leite, das mães pretas. É a Madrinha Eunice, neste território a expressão da história de luta e resistência popular dessa São Paulo, que manteve a herança de uma sociedade violenta, em que os filhos são filhos de uma família estendida, diferente das amas de leite, que foi uma profissão regulamentada, mas seguindo ainda assim uma tradição histórica da mãe preta, a madrinha assume os filhos dos outros, ela cuida, ela cria, amplia a rede de solidariedade e sobrevivência comunitária, ou seja, ela torna-se o centro da organização comunitária.
[35:39]
Narração Luiza: A própria Rose também falou sobre isso.
[35:43]
Entrevistada Rosemeire Marcondes: Ela sempre posicionou a nossa infância como prioridade, eu acredito, porque a educação que ela nos dava ali, naquele bairro de povo preto, naqueles cortiços, tudo onde cada um morava, ela transmitia algo que você buscava, não sei aonde a gente buscava aquilo, mas a gente tinha força, de que a gente não podia se rebaixar pra ninguém. E a gente acabou pegando isso, não só nós, não só eu, como a própria Bá, o próprio Tadeu, que é mestre de bateria lá do Vai Vai, que é afilhado dela, ele tem essa, sabe, o rostinho levantado e é o seguinte “aqui ninguém vai levar uma comigo não, entendeu?” Era dessa forma. E era isso que ela transmitia para nós, força, entendeu? E muito respeito entre um ao outro.
[36:46]
Narração Luiza: E a Cláudia ainda faz uma comparação com a sua própria infância.
[36:50]
Entrevistada Cláudia – Historiadora: Eu volto para a minha infância. Apesar dessa coisa que eu falo, essa dupla pertença religiosa e tudo mais, eu tinha esse quintal de Tia Ciata e de Madrinha Eunice. Porque, apesar dessa educação, a minha casa sempre foi uma casa que tinha samba, Candomblé, outras rezas. O fundo musical do meu final de semana era samba enredo, roda de samba. Então, o samba enredo me dizia que tinha princesa preta, que negro era lindo. A gente ouvia samba, a gente ouvia narrativas do morro, a gente ouvia histórias do maracatu, que não estavam nos livros escolares e isso me fortaleceu. Hoje eu me vejo uma ativista, uma mulher preta que, apesar de enfrentar um Brasil racista, sexista e todos os problemas e opressões que o Brasil tem, eu consegui chegar onde eu cheguei. Porque eu tive essa base, então eu tive esse quintal. Então, essas crianças pretas que estiveram no quintal de Madrinha Eunice, da Tia Ciata, eles enfrentaram um Brasil muito desigual, mas com essas referências de saberes negro-africanos, de um jeito de olhar o mundo com esses saberes. E como é que ela é educada dentro da comunidade? Ela é educada por todos. Lembra lá atrás quando eu falei? Precisa de uma aldeia inteira para criar a criança, porque todos são responsáveis por passar os melhores valores para aquela criança. Aquela criança precisa ser alimentada por todos, ela precisa ser educada por todos e todos são responsáveis por viver dando o melhor exemplo para a criança. Por isso que os valores são muito importantes na convivência dentro de um terreiro. Por isso que não é aético. Tem muita ética numa relação, numa comunidade de terreiro. Porque existem crianças e você precisa dar bons exemplos para a criança, porque a criança vai assumir o seu lugar.
<<<<< Trilha Sonora: chocalho, clave e percussão corporal >>>>>
<<<<< Trilha Sonora: Apitos, violão e percussão corporal >>>>>
[39:19]
Narração Luiza: E aqui termina o nosso primeiro episódio. Não dá para começar essa história sem falar de racismo estrutural, padrões coloniais impostos e todas essas estruturas da sociedade que até hoje mantém as crianças vulneráveis à violência sexual. Complexificar os fatos é o primeiro passo para esse combate. E fazemos isso celebrando as histórias de luta pouco contadas. E aí, criou coragem? Fica com a gente. No próximo episódio, a gente vai falar de Infância e Trabalho.
<<<<< Trilha Sonora: chocalho, clave e percussão corporal >>>>>
[39:51]
Entrevistado Eribelto Castilho | Instituto Bixiga: Mas quem tem acesso ao menos a uma CLT hoje, não foi o Vargas que deu, foram as crianças que arrancaram ao longo das greves junto com as mulheres. Então, por isso, obviamente, o maior controle dessa população, especialmente por meio do trabalho.
<<<<< Sons de fábrica >>>>>
[40:06]
Entrevistada Danielle Franco | Instituto Bixiga: E esse trabalho infantil era fundamental, aliás, é fundamental no Brasil. E sempre foi fundamental, numa sociedade escravista, o trabalho da criança, ele é o centro.
<<<<< Trilha Sonora: chocalho, apito, violão, percussão corporal >>>>>
[40:21]
Narração Luiza: Esse podcast é uma produção de Cria Coragem, realização do Instituto Çarê e Bruta Mirada em parceria com o Galo da Manhã. Eu sou Luiza Akimoto, pesquisadora, diretora de sonoplastias e narradora desse podcast e da plataforma Cria Coragem.
[40:37]
Concepção de equipe, Cria Coragem.
Direção, roteiro e pesquisa de Alícia Peres.
Co-direção e montagem de Julia Rufino.
Produção de Heloísa Feliciana.
Pesquisa de Alexandre Kishimoto.
Desenho de som, mixagem e finalização Luiza Akimoto
e trilha sonora de André Riugi e Luiza Akimoto.
Comunicação de Estúdio Verbo e design de Diego Garcia.
[41:03]
Nossos entrevistados foram Cláudia Alexandre, jornalista, professora e doutora em ciência da religião. Rosimeire Marcondes, carnavalesca, cozinheira e neta de Madrinha Eunice.Danielle Franco da Rocha e Eribelto Peres Castilho, historiadores do Instituto Bixiga e Elisângela Dias, escritora e pesquisadora.
[41:25]
Nesse episódio, utilizamos gravações do SBT no programa do Silvio Santos. O quadro Pergunta pra Maísa, realizado no dia 8 de fevereiro de 2009. Da TV Globo, no programa Show da Xuxa, de 1989. E trechos de entrevistas do canal Infâncias Despedaçadas no YouTube.
[41:42]
A Cria Coragem é uma plataforma idealizada por Elisa Bracher e Ana Cristina Sintra. Nos nossos canais, você pode conhecer mais conteúdos e se juntar a nós na luta pelo fim do abuso sexual contra crianças e adolescentes.
[41:57]
Nosso site é o criacoragem.com.br e o nosso Instagram é @somoscriacoragem. Obrigada e até a próxima.