Podcast EP #02

Por que Trabalha?

INTRODUÇÃO

[00:01]

Narração Luiza: Esse é um podcast que busca desnaturalizar as violências cotidianas, aprofundando reflexões. Talvez algumas histórias aqui te toquem pessoalmente, pois são as histórias de todos nós. Fica aqui, então, um aviso de gatilho possível.

 

<<<<< Trilha Sonora: Chocalho e Clave >>>>>

 

[00:27]

Narração Luiza: Quantas horas você trabalha por semana? E quantas horas você trabalhava quando era criança? Parece uma pergunta estranha, né? Pois é, mas a grande maioria dos brasileiros tem resposta e memória para esta questão.

 

  <<<<< Música Escravos de Jó >>>>>
  <<<<< Sonoridades de Fábrica >>>>>

 

FICÇÃO

[01:01]

Narração Luiza: Era uma vez o mal em pessoa. Ele veste um corpo de homem feito que chega arrastado pela porta da fábrica. 

 

<<<<< Cama sonora de tensão >>>>>


[01:10]
Narração Luiza: O mal é folgado quando o assunto é esforço, mas às vezes ele se move, pelo lucro. São corredores sujos, com milhares de mulheres e crianças, que prendem o medo nos pulmões cada vez que ele entra. Todo mundo ali conhece o mal, de perto. Ele é criativo, isso é. A fábrica produz peças de vidro e tem uma série de possibilidades de usar os cacos quebrados contra a criança, operária de mãos pequenas que às vezes deixa a mercadoria escorregar. Mas hoje, hoje ele está afiado. Às vezes isso acontece. Ele passa, do limite da dor. 

 

<<<<< Sonoridade de estilhaços de vidros >>>>>


[01:58]
Narração Luiza: O maneco chega machucado. Nas primeiras linhas de produção, a luz da porta ainda alcança o espaço e dá pra ver nos olhos dele o que o mal faz. Seu amigo Bento manipula a máquina com pressa, mas pára assim que vê o maneco desse jeito. Foi tomado por um basta: “Ah não, o pequenininho não”. Bento caminha para dentro da escuridão do corredor de máquinas e raiva, carregando consigo a mensagem. Lógico que cada um ali pensa nisso todo dia. Magrão e Socó já tem até uma lista de sugestões para cuidar do maldito. De galeria em galeria, Zé Pimenta corre a notícia até Caveirinha. Precisam da ajuda do Lampião. A escuridão ali sempre pode ficar um pouco maior. No chão entulhado do setor de embalagem, Boca de Véia sussurra o plano para Três Cocos. Zé da Penha acaba ouvindo. Coruja e Tatu arrastam juntos o grande balde d’água, tensionando os bracinhos. São dos mais novos e não conseguem conter a ansiedade. Acabam derramando todo o assunto no chão dos fornos, a caverna mais profunda daquele lugar. Aí já não tem mais volta. Nos fornos, o calor e o cheiro ruim cozinham ódio naquelas almas tão novinhas. Fantasma, Rachado e Mata Cinco se aproximam de João Grande com cuidado. Sussurram juntos a vingança com um ditado da escola que eles nunca frequentaram.

<<<<< Música Escravos de Jó reverberando >>>>>

 

[03:46]

Narração Luiza: João Grande levanta bem lentamente e faz que sim com a cabeça, olhando para baixo os três menores. 

 

<<<<< Sino do fim do turno >>>>>
<<<<< Batimento cardíaco >>>>>

[03:56]

Narração Luiza: O coração deles bate mais alto que o sino do fim do turno. Agachados no mato, eles esperam. 

 

<<<<< Sonoridade da cidade>>>>>

[04:04]

Narração Luiza: É 1922 e a Avenida Celso Garcia, na Zona Leste, está muito distante de ser uma via movimentada, nada de Carrefour ou Parque Edu Chaves parado no ponto de ônibus. Nessa São Paulo, sem metrô linha vermelha, nesse território sem Estatuto da Criança e do Adolescente, o Rio Tietê é a única coisa que se ouve, em seu cheiro e formato original, cheio de curvas. 

 

<<<<< Sonoridade água corrente >>>>>

[04:35]

Narração Luiza: A fábrica Matarazzo, emprego dos meninos, divide muro com o reformatório das meninas. A notícia corre à boca pequena e todas elas largam a enxada e nem se lavam.

 

[04:46]

Vão direto ao encontro do grupo, carregando tudo que é tipo de pedra e tijolo quebrado nas dobras dos aventais. Mata Cinco olha feio pra elas, fala que vai dar problema, mas Tatu nem espera ele terminar. “Passam pior que nós”, ele diz, “Confio mais nelas do que em qualquer patrão”. Demorou, mas lá vem o mal, cambaleando no horizonte. 

 

<<<<< Cama sonora de tensão >>>>>

<<<<< Passos  na grama >>>>>
<<<<< Tosse de um adulto >>>>>

 

[05:10]

Narração Luiza: A careca e o bigode protegidos pelo chapéu, o fedor de vinho na camisa preta de Musselini. 

 

<<<<< Pedregulho caindo no chão >>>>>

 

[05:18] 

Narração Luiza: É Tatu que lança a primeira pedra, não conseguiu esperar o momento combinado. O bracinho faminto não fez nem cócegas, atinge o sapato italiano e só. O mal não fala uma palavra em português, mas nem se falasse não teria tempo de pedir ajuda. A chuva de pedradas que se segue tem a força de um pequeno exército.


<<<<< Trilha de Ação >>>>>
<<<<< Pedradas e luta >>>>>
<<<<< Gritos, correria, uivos e risada de criança >>>>>

 

[05:42]

Narração Luiza: São assobios, uivos, terra, barro. Por quanto tempo essa redenção foi imaginada? Dizem que dá pra sentir até hoje o cheiro do álcool naquele ponto da avenida onde um mal perdeu uma perna. Cada caco atirado carrega um corpo de dor. É muita coisa de muito tempo. Um gosto amargo de língua calada. Um desejo entalado de correr. Uma saudade do mar. Um cansaço faminto misturado com uma porrada recente. Coisa que corpo nenhum tinha que sentir. Muitos fogem na primeira estilingada. Outros riem com força até a barriga doer. 

 

<<<<< Batimento cardíaco e respiração ofegante >>>>>
[06:30]
Narração Luiza: Três cocos é um desses, mas os seus olhos não, não ri e nem corre, está cego de água salgada.

 

<<<<< Trilha Sonora: Apitos, violão e percussão corporal >>>>>

 

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[06:52]

Narração Luiza: Bem-vindos ao nosso podcast. Eu sou Luiza Akimoto, pesquisadora e sonoplasta da Cria Coragem e vou conduzir essa caminhada sonora. Este é o nosso segundo episódio da temporada Cria Histórias. 

 

[07:05]

O podcast é uma série de quatro episódios. No episódio de abertura, vocês conheceram a história da Madrinha Eunice, uma das matriarcas do samba paulistano que, com sua comunidade, chegou a criar mais de 50 crianças naquela São Paulo do começo do século XX. Ali mesmo, começamos a refletir sobre uma prática que começa com a invasão colonial e nunca deixa de existir: a exploração dos corpos das crianças e jovens para o trabalho e o lucro

 

[07:36]

Crianças que são obrigadas ao trabalho pesado, longe de suas famílias, estão também expostas a outras violências, inclusive o abuso sexual. Complexo, né? Então, se o assunto é difícil, Cria Coragem.

 

<<<<< Trilha Sonora: Chocalhos >>>>>

 

[08:01]

Entrevistada Margareth Rago | Historiadora | Leitura de trecho do livro Do Cabaré ao Lar: A industrialização no Brasil foi realizada em grande parte por esse pequeno produtor, que trabalhava tanto quanto os adultos mas que recebia menos por ser menor. Nas fábricas de vidro, seu trabalho era indispensável, assim como em outras indústrias. O industrial Matarazzo, por exemplo, chegou a adquirir máquinas pequenas, adequadas ao tamanho das crianças, para aumentar a produtividade do trabalho na fábrica Mariângela. O Jacob Penteado descreve ainda o trabalho infantil no interior da Cristaleria Itália, ou Fabriquinha, onde as crianças acabavam sendo exploradas também pelos operários adultos. Os pequenos deviam chegar antes que os oficiais para encher de água latões e tinas, onde as peças eram reaquecidas para o acabamento. Com isso, as crianças operárias acabavam trabalhando ainda mais que os mais velhos e quando a fusão do vidro retardava, aumentavam para 11, 12 até 15 horas de trabalho.

 

[09:01]

Entrevistada Margareth Rago | Historiadora: Meu nome é Margareth Rago, sou historiadora, sou professora do Departamento de História da Unicamp, agora sou aposentada colaboradora. Eu comecei a estudar, não ia estudar as mulheres e as crianças, eu ia estudar o proletariado. Quando eu comecei a estudar o proletariado, descobri que só tinha mulher, metade do proletariado. Falei, então não é o proletariado, é a proletariada, porque eram fábricas de tecidos, de costura, de fósforo, de vela, ainda não existia indústria pesada. Quando nasce a indústria pesada, a partir da década de 30, aí são os homens que entram. Mas esse começo tem muita mulher e muita criança, o que me espantou na minha pesquisa, além de ficar falando da opressão, é que as crianças se insurgiram.

 

<<<<< Trilha Sonora: Chocalhos, violão, assovio e percussão corporal >>>>>

 

[09:47]

Narração Luiza: Foi na pesquisa da professora Margareth que encontramos a descrição da cena que abre esse episódio. A gente criou essa ficção baseada nos detalhes narrados por Jacob Penteado sobre como um grupo de crianças trabalhadoras, como ele mesmo, se vingou de um capataz muito cruel depois de um dia exaustivo de trabalho. No livro “Do Cabaré ao Lar”, a professora Margareth descreve formas de resistência de crianças operárias. Como e por que essa história é tão pouco contada? As cenas descritas nos impressionaram muito. E a gente foi atrás dela para saber mais. 

 

[10:23]

Entrevistada Margareth Rago | Historiadora | Leitura de trecho do livro Do Cabaré ao Lar: Centenas de crianças que ali se estiolam na sessão de fiação, cansadas de serem exploradas miseravelmente e, ultimamente, coagidas a trabalhar nove horas por dia, resolveram abandonar o trabalho para fazerem respeitar a jornada de oito horas. Foi quanto bastou para que os janízaros trancassem todas as portas e janelas da fábrica, querendo assim evitar que os pequenos mártires do trabalho pudessem regressar aos seus lares. 

 

[10:23]

Narração Luiza: Margareth pesquisou a imprensa operária que retrata o dia a dia das fábricas naquele tempo. São muitas as formas de resistência protagonizadas por crianças dentro dos complexos fabris onde trabalhavam, cresciam e, por muitas vezes, morriam em milhares. Sabe toda essa discussão atual sobre a semana de trabalho no formato 6×1? Pois é, em 2024, a deputada Erika Hilton levantou essa conversa propondo uma emenda na Constituição. Na proposta dela, a semana teria quatro dias de trabalho, sobrando os outros três para que as pessoas possam estudar, estar com a família, se divertir. Essa conversa não é de hoje, né?

 

[11:31]

No começo do século XX, foram grupos de crianças que pararam as fábricas, arriscando as próprias vidas para garantir o nosso direito aos turnos de trabalho de oito horas. É muito forte pensar nisso e tivemos muita vontade de contar essa história para todo mundo. Aqui ela lê uma dessas reportagens de um jornal operário. 

 

[11:52]

Entrevistada Margareth Rago | Historiadora: O texto termina lembrando aos operários que estão reunidos todos os industriais de Sorocaba para estudarem os meios práticos de submeterem os pequenos grevistas. Se o vosso apoio não chegar a tempo, as crianças serão vítimas de seus algozes, que algozes nossos são. Olha isso. Essa história está narrando que as crianças não eram bobas, que elas não eram idiotas, que elas sabiam se colocar e sabiam brigar, não é? 

 

[12:22]

Narração Luiza: Sim, professora. O nosso podcast tem também esse objetivo, contar para todo mundo que as infâncias podem até estar vulnerabilizadas, mas elas nunca foram frágeis ou fracas, muito menos abusáveis. Esse trecho lido pela professora também é importante para lembrar que as crianças não são um grupo apartado, separado da sociedade. Portanto, os direitos delas são também os nossos. 

 

[12:50]

Entrevistada Margareth Rago | Historiadora: Quer dizer, eu acho que é uma criançada que não foi disciplinada ainda. Isso que me impressionou, entendeu? De repente ter uma mobilização infantil, das crianças fazerem greve, fazerem boicotes ou abandonarem o trabalho. E assim, eu acho que é também um momento em que, para nós, é muito nítido o que é criança e o que é adolescente. Nessa época não é. 

 

[13:15]

Narração Luiza: A gente vai voltar a falar disso já já, cada época tem uma concepção diferente do que são infâncias e adolescências. As ideias concebidas ao longo da nossa história não podem ser desligadas, elas permanecem influenciando os tempos futuros. Então, nossa pergunta pode ser: Que concepções de infâncias e adolescências estamos construindo hoje? Como é que você pensa essas fases da vida? 

 

[13:47]

Narração Luiza: Essa temporada do nosso podcast faz um recorte específico de tempo e território, a cidade de São Paulo. Ainda assim, percebemos o quanto as histórias não estão escondidas em um passado, elas estão espelhadas também em tempos presentes. 

 

[14:04]

Entrevistado Mario Deganelli | Músico e Poeta: E aí a minha mãe, ela é de uma família, a minha avó teve 17 filhos. E ela foi trabalhar numa casa de família como empregada doméstica, ficou sendo criada por essa família, minha avó deu ela pra essa família com 8 anos de idade, então ela limpava a casa, cuidava de toda a família com 8 anos de idade. Isso traz pra vida dela de adulta uma coisa de “Se eu trabalhei com oito anos e a gente está aqui nessa situação, pô, fez oito, nove, dez anos, vai trabalhar. Porque aí você ajuda em casa, ajuda a gente a pagar as contas aqui”

 

[14:48]

Me chamo Mário Deganelli, eu sou um multiartista, eu passeio pelas linguagens, principalmente pelas linguagens da música, das artes plásticas, da escrita poética, tenho 51 anos, sou pai do Marx. Como naquela época se permitia, né, que isso é anterior ao ECA, se permitia trabalhar a partir dos 12 anos de idade, então, quando eu fiz 12 anos, a minha mãe, ela tinha uma inserção política que era engraçada, porque ela ia conversando com as pessoas do bairro e aí falavam, ó, vai lá em tal vereador porque ele consegue arrumar emprego.

 

[15:28]

E aí nessas, um vereador ligou pro dono dessa primeira empresa, que chamava Plásticos Mateco, depois virou Lidse, que era uma fábrica que fazia bonecos infláveis, aqueles João Bobo, sabe? Então, ele me arrumou um trabalho lá de ajudante geral. Então, eu ficava, fazia de um tudo, mas principalmente ficava pegando material de um lugar, colocando no carrinho e levando pro outro, pras máquinas que prensavam os bonecos. 

 

[15:58]

Alícia | Equipe Cria Coragem: Então você era uma criança que trabalhava numa fábrica de brinquedos? 

 

[16:02]

Entrevistado Mario Deganelli | Músico e Poeta: É, isso eu nunca tinha refletido sobre isso, é verdade. 

 

[16:07]

Narração Luiza: Essa aqui não é uma história de um passado muito distante, não. Nos anos 80, o Mário era uma criança trabalhadora de fábrica com carteira assinada aos 12 anos. 

 

[16:18]

Entrevistado Mario Deganelli | Músico e Poeta: Lá pelo sétimo mês, oitavo mês que eu estava trabalhando, a empresa resolveu, na hora do café, tanto do café da manhã quanto do café da tarde, que eram 15 minutos de café, garantido por lei, as pessoas demoravam.

 

[16:43]

Segundo eles, levava muito tempo, até sair do seu local de trabalho, marcar o cartão, fazer os 15 minutos de intervalo, marcar o cartão e voltar para o trabalho, eles falaram que a empresa perdia, tipo, 10 minutos com cada funcionário, todo horário de café, né? Então por conta disso eles passaram um memorando. Não consultaram a gente, passaram um memorando na empresa falando que a partir de tal dia, vocês não vão ter mais o horário de café nos intervalos. E aí, claro que foi um descontentamento geral. E claro que eu, já naquela época, tendo toda essa postura de questionamento político, claro que eu falei, pô, tá errado isso aí, né? O horário do intervalo no meio é justamente porque a gente fica quatro horas seguidas trabalhando sem parar, né? Quatro, cinco horas.

 

[17:39]

Comecei a falar com um, comecei a falar com outro e falei, eu vou fazer um abaixo-assinado. Levei esse abaixo-assinado na diretoria da empresa, eles disseram, olha, é legal, mas vai ficar assim mesmo, do jeito que tá. A gente já decidiu, né? Aí eu fui procurar o sindicato pra ajudar a gente a se defender. E aí eu me lembro que quando o sindicato foi, marcou uma reunião com a diretoria para negociar, me chamaram lá para ser o representante da peãozada. E é isso, imagina, um menino de 13 anos de idade, eu lembro que eu tremia naquela reunião com um monte de cara com cara de mal. Eu lembro que ainda tentei argumentar, tentei fazer as contas, aí eu acho que teve um cara que eu me lembro, não sei se foi do sindicato ou da própria empresa, que ele foi solidário, ele viu que eu estava muito nervoso, ele terminou as contas e falou, ele tem razão, é isso mesmo. E aí a gente ganhou a causa, a gente conseguiu voltar o horário de intervalo como era antes.

 

<<<<< Trilha Sonora: Chocalhos >>>>>

 

[18:58]

Entrevistado Casé Angatu | Historiador e Professor: A gente canta uma música, um toré que é assim:

[19:00]

“Quebra a cabaça, espalha a semente, corta a língua de quem fala mal da gente. De quem fala mal da gente, corta a língua, arranca os dentes. Bate e rebate, torna a rebater. A pisar do lajeiro é fazer derreter. A pisar do lajeiro é fazer derreter”. 

 

[19:21]

As crianças cantam na escola indígena essa canção e quem ouve, as pessoas ficam meio pasmadas, né? Falam, nossa, que violento. Nossa, que infantil. Corta a língua, arranca os dentes. Parece xingamento de criança, mas para a gente tem um sentido profundo. É porque muitos de nós gostamos de não ter saído da fase da infância. 

 

[19:53]

Narração Luiza: Aqui você ouve a voz do historiador e doutor Casé Angatu, e acho que ele mesmo pode se apresentar.

 

[19:59]

Entrevistado Casé Angatu | Historiador e Professor: Meu nome é Casé Angatu, sou do povo Tupinambá e povo Xucuru, moro lá em Ilhéus, na Bahia, sul da Bahia, e estamos falando aqui de uma visão indígena na cidade de São Paulo, mas tentando abordar a questão da infância, da criança. 

 

<<<<< Trilha Sonora: Apitos, violão e percussão corporal >>>>>

 

[20:16]

Narração Luiza: Casé é pesquisador das relações humanas na São Paulo do começo do século XX. Ele vai aparecer nesse episódio algumas vezes para ajudar a gente a entender a complexidade da questão “infâncias e trabalho” nesse período histórico e como elas refletem até hoje. Ele começa abordando realidades daqueles que na história do nosso país não tinham acesso às fábricas e às suas rotinas exploratórias. 

 

[20:44]

Entrevistado Casé Angatu | Historiador e Professor: Eu tenho quase certeza que nunca foi de maioria imigrante essa cidade, mesmo no final do século XIX. Mas aí se atribui a mão de obra imigrante, nada contra os imigrantes que foram explorados, que se reuniram, fizeram a militância, organizaram o sindicato, fizeram as greves, o movimento anarquista, o movimento comunista, mas mesmo eles tinham dificuldade de nos enxergarem, porque os jornais eram escritos em italiano, em espanhol. Mesmo que fosse escrito nessa língua, a gente não saberia ler. E, por vezes, entrava na lógica da luta de classes os que estavam na fábrica, nós não estávamos na fábrica, porque os donos da fábrica, Scarpa, Carboneri, Matarazzo, os Patrícios, eles só empregavam os Patrícios, não empregavam mão de obra negra, indígena, cabocla. Então a gente ficou até fora do discurso sindical. São pessoas que não estão na lógica fabril somente, aquelas que eles chamavam de prostitutas, de quituteiras, de vagabundos, de vadios, os que estão fora da fábrica. Então não entrava no discurso sindical. E aí a visão classista não nos atribuía valor na luta de classes. 

 

[22:06]

Narração Luiza: Casé vem apontar para uma proposta de estrutura urbana e social que impede o sentimento de comunidade, de encontro, de trocas de alegrias, dores e pensamentos. Esse modelo de cidade, infelizmente, se consolida e se expande. Você, hoje, no lugar onde você mora, tem espaço de troca com os seus vizinhos ou com os grupos que você estuda ou trabalha? Pois é, sem a possibilidade do encontro, fica mais fácil desmobilizar e controlar grupos de pessoas. A professora Margareth também falou sobre isso. 

 

[22:49]

Entrevistada Margareth Rago | Historiadora: Então, no Brasil, isso está começando a acontecer com o surgimento das cidades modernas no começo do século XX, na virada do século. Nesse contexto de nascimento da cidade moderna, eles vão também criar uma outra ideia de sociedade, uma outra ideia de trabalho e uma outra ideia de infância. Porque no mundo rural não existe a ideia da criança “reizinho da família”, o mundo rural é o oposto disso, a criança participa do mundo adulto, não tem essa separação. Então, não existe essa sociedade panótica, toda esquadrinhada, individualizada, que vai ser criada com o capitalismo urbano industrial. Então, acho que é uma outra noção de infância. É evidente que esses médicos, esses juristas, essa intelectualidade que manda, que é prefeito, que é governador, que estão pensando esse mundo, eles estão preocupados com os ricos, não com os pobres. Então, essa ideia de segregação não existe no mundo rural, isso vai acontecer no mundo urbano, é capitalismo, mas é o capitalismo urbano industrial, é outro momento. Então, a ideia é uma cidade espacializada, é uma arquitetura do poder. Rico mora aqui, pobre mora ali. Branco aqui, negro ali. Mulheres castas aqui, prostitutas ali. As crianças nas escolas ricas aqui, as pobres, paciência, vai lá para Santa Casa, estão perdidas mesmo.

 

[24:20]

Entrevistado Casé Angatu | Historiador e Professor: A Vila Operária é funcional, é Foucault, né? É a microfísica do poder, você estabelece o poder sobre os corpos o dia inteiro, mesmo quando você estiver dormindo. Você dorme para ir trabalhar, você não dorme para descansar e ter um lazer no dia seguinte. A igreja, o comércio, o lazer, fica tudo na vila. E nas vilas não tem a mão de obra, raramente tinha indígena, negra, cabocla, por causa das questões raciais. O livro mostra isso, tem os dados. Como era muito reduzido o número de pessoas indígenas, pretas, caboclos, trabalhando nas fábricas. Aí é a rua, é a rua e a mesma coisa do espaço de trabalho, é o espaço de lazer. 

 

[25:09]

Entrevistado Casé Angatu | Historiador e Professor: A carteira de trabalho é um documento de polícia. Ela surge como um documento de controle. A polícia mesmo dizia: RG é documento de vagabundo, quero ver se tem carteira de trabalho para saber se você está sob o controle. No meu livro “Nem Tudo Era Italiano”, eu mostro que o código de posturas dizia que a pessoa que não tem emprego fixo, moradia fixa, é vagabundo. Quem? Todos nós. A maioria de nós somos vagabundos porque não temos emprego fixo e nem moradia fixa, porque fogem do controle.

 

[25:42]

Notícia de jornal: Uma cidade do interior de São Paulo levou às últimas consequências à tolerância zero contra o crime e está aplicando, para valer, uma lei meio esquecida, a que pune a vadiagem. Quem for parado numa blitz da polícia e não tiver ocupação profissional será fichado numa das delegacias da cidade. Está no artigo 59 da lei de contravenções penais. Ficar sem fazer nada, sendo apto para o trabalho, é considerado vadiagem. 

 

[26:12]

Entrevistado Casé Angatu | Historiador e Professor: Então a gente está aqui no Fórum João Mendes, que é um dos espaços do poder, dos espaços da chamada “justiça”, que para muitos é injustiça, né? E aí estamos aqui perto de uma estátua, que são os vendedores de jornais e o engraxate, né? Que são provavelmente duas profissões de rua, de espaço público. O espaço público era o espaço das pessoas rejeitadas pelo poder privado e também são espaços de pessoas, pensando ao contrário, que rejeitam o espaço privado. A gente tem que pensar também sempre em duas mãos. Aquilo que a gente estava falando anteriormente, que é o ar de liberdade, de poder você circular. Então, o engraxate de sapato e o jornaleiro, os dois com o pé no chão, provavelmente esses meninos brincavam ao mesmo tempo que trabalhavam, faziam amizade e viam, curtiam a vida. Sempre lembrando isso, nós, povos originários e povos da África, mesmo depois da escravidão, não encaramos necessariamente certas coisas que são chamadas de trabalho como sofrimento, mas sim também como formas de vivência e de liberdade. E o espaço público sempre pode ser o espaço da liberdade.

 

[27:42]

A estátua o que é? É uma criança menor com uma caixa de engraxar sapato nas costas, com dois sapatos já na caixa, ele com uma mão sobre a outra mão, sendo abraçado por um menino maior, com jornais debaixo do braço, um chapéuzinho e os dois de paletózinho. O paletózinho é para dar uma aparência mais ou menos de estar na cidade, mas os dois estão descalços. A figura maior, com o chapéuzinho, ele tem o cabelo mais liso, talvez ele seja o filho de um imigrante pobre, empobrecido, que teve que viver, em alguns casos, no mesmo cortiço de pessoas indígenas e pessoas pretas. 

 

[28:34]

Narração Luiza: Aqui, o professor Casé criou uma aproximação entre a vulnerabilidade e as explorações das crianças brancas imigrantes e das crianças pretas e indígenas. Sim, as crianças brancas também trabalhavam e sofriam abusos, mas essas famílias, vindas de uma Europa em crise extrema, recebiam incentivos de moradia, educação, trabalho nas fábricas, ou seja, não foram sequestradas e traficadas para o chamado “Novo Mundo”. Longe de ser um cenário ideal, essa diferença de condição fez com que a maioria das famílias brancas acendessem rapidamente nesse novo lar, enquanto parte das famílias negras e indígenas seguem até hoje lutando contra o racismo e buscando acesso a condições dignas de vida. 

 

[29:20]

Entrevistado Casé Angatu | Historiador e Professor: Mesmo que ocupassem os mesmos cortiços, os imigrantes europeus, pobres, empobrecidos, saindo da roça de lá e depois também saindo da roça aqui de São Paulo, viviam nesse espaço de cortiço, mas os fundos do cortiço, as piores áreas do cortiço, eram dedicadas àqueles que tinham pouco dinheiro, menos dinheiro do que aqueles que já tinha pouco. E geralmente era a população negra, a população indígena, cabocla, alguns chamam de parda, né? Essa população. Então, dentro da lógica do próprio cortiço, tinha essa distribuição espacial. As partes melhores do cortiço, não quer dizer extremamente boas, mas melhores, dentro de um lugar bastante precário de vivência, eram para aqueles que tinham algum rendimento ainda. O jornaleiro, que dava mais dinheiro, podia ainda vender o jornal, porque ele tinha que pegar o jornal de alguém. E a criança com a caixa de sapato. É madeira, ela mesmo constroi e sai na rua aleatoriamente querendo engraxar sapato. É uma criança preta, né? Então também a própria estátua pode remeter que mesmo sendo pobre o imigrante, isso não é uma fala contra o imigrante, por favor, mas mesmo sendo pobre o imigrante, ele ainda ocupava alguns espaços, algumas possibilidades a mais de acesso ao trabalho do que uma pessoa, uma criança preta, uma criança indígena, uma criança cabocla ou parda.

 

[31:08]

Entrevistada Danielle Franco | Instituto Bixiga: E esse trabalho infantil era fundamental, aliás, é fundamental no Brasil. E sempre foi fundamental. Numa sociedade escravista, o trabalho da criança é o centro. 

 

[31:23]

Narração Luiza: Você lembra da professora Danielle Franco da Rocha? Ela é historiadora do Instituto Bixiga e participa também do nosso primeiro episódio deste podcast. 

 

[31:33]

Entrevistada Danielle Franco | Instituto Bixiga: Uma sociedade que você tem, como São Paulo, um valor, uma vila, mãe solos, viúvas. Então, a criança aqui era fundamental no trabalho doméstico ou nas vendas, nos tabuleiros, no garoto de recados e isso se expressou na legislação. Então, quando a gente fala de abolição da escravidão, e a gente está falando aí de, infelizmente, a historiografia fala de uma abolição lenta, gradual, a gente vai ter, dentro dessas legislações, a Lei do Ventre Livre, que, teoricamente, no seu parágrafo primeiro, liberta todas as crianças nascidas a partir da data da lei, ou seja, em 1871. Só que essas crianças, no artigo 2, estão condicionadas a viverem com os senhores de escravos, o senhor das suas mães, até os oito anos. E a partir dos oito anos de idade, o senhor de escravos tem duas possibilidades, ou ele fica com essa criança, sendo assim, ele pode alugar o serviço dessas crianças até os 21 anos, ou ele devolve para o Estado essa criança, e essa criança, então, essa devolução do escravizado para o Estado, é indenizável. Então, a gente fala que a Lei do Ventre Livre, ela, na verdade, não liberta, mas ela regulamenta o trabalho infantil no Brasil. É a primeira lei de regulamentação do trabalho infantil no Brasil. 

 

[33:08]

Narração Luiza: Só com a criação do ECA, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, que o Mário, ouvido anteriormente, e muitas outras crianças, foram protegidas do trabalho infantil. E, como na Lei do Ventre Livre, apenas na teoria. 

 

[33:25]

Notícia de Jornal: E você viu aí, né? Falta creche, falta escola. Então, o que acontece? Muitas crianças, adolescentes, acabam partindo para o trabalho infantil. Os flagrantes desse tipo de problema aumentaram no nosso Brasil. Grande parte das crianças e adolescentes foi encontrada em atividades como construção civil, venda de bebidas alcoólicas, coletas de lixo, oficinas mecânicas, lava-jatos e comércio ambulante. Todas estão na lista das piores formas de trabalho infantil, porque oferecem graves riscos à segurança e à saúde. 

 

[33:27]

Narração Luiza: O trabalho infantil no Brasil ainda é uma realidade que atinge as diversas infâncias de formas diferentes. 

 

[34:10]

Notícia de Jornal: A plataforma de jogos Roblox, que é muito, muito, muito usada nesse perfil de crianças e adolescentes do mundo inteiro, não apenas do Brasil, é alvo de uma investigação nesse momento do Ministério Público do Trabalho de São Paulo. Qual é o motivo? A investigação é de um trabalho infantil online com crianças e adolescentes desenvolvendo jogos para o site, para essa plataforma, na esperança de ter lucros com a aquisição da moeda virtual, a chamada Rubux. 

 

[34:46]

Narração Luiza: O trabalho infantil também segue ao lado da exploração e violência sexual. A professora Danielle completa esse raciocínio aprofundando ainda mais no como a história colonial do nosso país, ao explorar o trabalho das crianças, acaba criando uma cultura e uma ideia de que as infâncias e adolescências são espaços propícios para explorações diversas. 

 

[35:11]

Alícia | Equipe Cria Coragem: Será que a gente consegue desenhar algum tipo de associação com dados práticos históricos? Dessa construção de um imaginário da erotização da criança. A gente, historicamente, vai construindo, então, dessa forma, uma erotização, será que existiam exemplos práticos que possam ser pistas para esse contexto da gente naturalizar crianças tão pequenas vistas como erótico mesmo? 

 

[35:43]

Entrevistada Danielle Franco | Instituto Bixiga: Com 12 anos a criança já podia casar, a menina já podia casar, ou seja, com 12 anos, ao se tornar já, teoricamente, madura sexualmente, ou não, essa criança já era utilizada também de forma sexual. Então, eu acho que também carrega um pouco essa dimensão, essa tutela, de “tudo pode”. Então, sobre o corpo da criança, tudo pode. A palmatória adentrou o século XX nas escolas, institucionalmente. A criança atingindo 12 anos, ela já era considerada apta para casar e trabalhar. Então, nesse sentido, a violência desses casamentos já logo no início, o uso sexual dessa criança sempre foi naturalizado na nossa sociedade, uma sociedade onde essa criança tem de ser útil. 


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[36:45]

Entrevistado Casé Angatu | Historiador e Professor: Tem uma estátua toda preta, com anchieta, tendo ao colo, debruçado no colo dele, a menina Bartira. A Bartira era uma criança. Conta-se a história que ela, por volta de 12, talvez 14 anos, na infância dela, ela foi casada. O pai dela, que é o Tibiriçá, casou ela com o João Ramalho. Ele vem colonizar antes dos colonizadores oficiais. Então, entre 1500 e 1532, quem está aqui em São Paulo é João Ramalho morando lá em Santo André. São Paulo não existia, não. Diz a história que ele tinha mais de 30 esposas e 80 filhos, olha é aí que começa a tragédia da infância aqui nessas terras. 

 

[37:34]

A história da menina e do menino violentado. “Ah, mas os corpos de meninos também eram violentados?” Sim, sempre foi. Os invasores sempre violentavam os corpos de crianças, meninas e meninos. A diferença é que o menino não gera, a menina gera. 

 

[38:00]

Aí dentro do pátio tem uma estátua triste, é de cortar o coração. É quando João Ramalho é obrigado a vir morar no Pateo do Colégio e deixar escolher uma das esposas dele para morar com ele e ele escolhe Bartira. E aí é a cena da Bartira sendo batizada. É só ver o rostinho dela, isso eles foram fiéis, é um rostinho de criança. E isso de pegar crianças, isso é tática, é estratégia de ocupação do território. A história daquela “avó pega no laço ou no dente de cachorro” é a história de meninas indígenas de 12, 13, 14, 15 anos. O pessoal fica romanceando. E depois as mulheres negras também sofrendo uma violência, são crianças. A história desse país é da violência dos corpos femininos, masculinos e de crianças. Se colocava preço para as mulheres indígenas e mulheres negras, quanto mais jovem, mais cara. Por que será? Não é só por causa do trabalho na lavoura, é para a escravidão sexual, está na cara. E a mesma coisa dos corpos masculinos. Esses são os dedos da ferida que a academia ainda não gosta de falar. Aí vem a ideia do bandeirante caçador de esmeralda, os bandeirantes são caçadores de pessoas, de seres humanos. 

 

[39:25]

Narração Luiza: Aqui, na Cria Coragem, nós temos também a missão de desnaturalizar discursos que podem passar despercebidos no dia a dia. Muitas pessoas no Brasil já ouviram falar de uma avó ou tia que vivia cativa depois de ser “pega no laço” na mata. É dolorido pensar sobre isso, mas somos um país que naturalizou o sequestro e o abuso sexual infantil como o ponto inicial de constituição de muitas famílias. Falar sobre isso, por mais triste que seja, é também lutar para que nunca mais aconteça. Como uma pedra lançada no lago, a história de Bartira reverbera no presente, ecoa em ondas. É outro tempo, sim, mas toca no nosso agora. 

 

[40:05]

Alícia | Equipe Cria Coragem: Nós temos uma reflexão de que autoestima na infância e na adolescência impede abusos, diretamente. 

 

[40:10]

Entrevistado Mario Deganelli | Músico e Poeta: Completamente, eu concordo completamente com isso.

 

[40:09]

Alícia | Equipe Cria Coragem: Um indivíduo empoderado com sua autoestima vai saber dizer não, pedir ajuda, gritar, sair correndo, ter mais pistas sobre o que é o dito certo e o dito errado. Então, a gente também está pensando numa conclusão que essa entrada muito precoce no mundo do trabalho também influencia na construção de uma baixa autoestima. Também colabora para uma vulnerabilidade, porque a pessoa está sendo treinada a reproduzir, obedecer. 

 

[40:45]

Entrevistado Mario Deganelli | Músico e Poeta: Esse lugar de que a minha subjetividade não existe de fato. Eu sou sujeito à situação, eu não sou um indivíduo, eu sou um sujeito da situação, eu estou ali inserido num contexto que eu não tenho o poder, não tenho o menor poder, quando falo de empoderamento, não tenho o menor poder de decisão sobre a minha vida. 

 

[41:16]

Narração Luiza: Muitas gerações de crianças e adolescentes brasileiros foram expostas ao trabalho. Essa prática deixou muitas pessoas vulneráveis nesse momento tão importante da vida. Mais do que isso, a exposição a certos tipos de trabalho retiram o próprio sentido da vida, a autoestima e, muitas vezes, a coragem de gritar Não.

 

[41:39]

Entrevistado Casé Angatu | Historiador e Professor: As teorias raciais do século 19 e 20 voltam a usar isso, que nós, povos originários, indígenas, éramos povos infantilizados, infantis. E isso para mim é um elogio. Por quê? Porque realmente nós somos assim. Se você vai na minha comunidade, algumas comunidades indígenas, nós, os adultos, agimos como crianças por vezes. A gente gosta muito de brincar, não tem o tempo do trabalho, o tempo da brincadeira ou o tempo do lazer. É tudo junto, né? Então isso irrita a lógica de mercado, isso foi usado como algo contra nós. Nós precisamos nos tornar adultos, estarmos na fase adulta para ser civilizado. Então, o adulto é civilizado e a criança não é civilizada. Então, por isso que a criança parece, talvez, muito com os povos originários.

 

É alguém, são pessoas que precisam ser criadas para serem controladas nas suas liberdades, nas suas felicidades, nas suas tristezas, e assim vai.

 

[42:48]

Narração Luiza: O professor Casé Angatu ensina que essa ideia de utilidade da vida não atinge somente as crianças e jovens. Uma vida e uma sociedade pautadas por muito trabalho e quase nenhuma recompensa não faz muito sentido. E para convencer milhões de pessoas a viverem assim, sem questionar, é preciso treinar os indivíduos e normalizar opressões absurdas desde muito cedo. Pensa sobre aquela situação de trabalho extrema que você viveu recentemente, um chefe abusivo, uma jornada além da hora, um salário muito baixo, um assédio. No universo do jovem da criança, o exercício de poder torna ainda mais difícil fazer com que esse pequeno operário reaja. Mas, como a gente viu aqui, as crianças reagem, e muito. O abuso sexual segue um pouco essa lógica da propagação do silêncio. O direito tão simples de falar, contestar, gritar, que certos grupos exigiram nas últimas décadas, incomoda muita gente. 

 

[43:51]

Entrevistado Casé Angatu | Historiador e Professor: E as teorias, os colonizadores, desde o século XVI, diziam que o Anchieta, ou mesmo na carta de Caminha, ele dizia lá, Caminha, que eram pessoas com corpos bem formados, pessoas bonitas, corpos pardos, mas muito infantis. Então, porque infantis? Porque você infantiliza o outro, não no sentido positivo, mas no sentido de que precisa de um controle, portanto. Ele tem que sair dessa infância. Então, infantilizar no século XVI, XVII, XVIII, com as teorias raciais do século XIX, você parece uma criança. Você não cresce, não? Você não cresceu? Depois de uma idade que já seria adulta ou adolescente, dizer que ela é uma criança, que ela é infantil, é algo pejorativo, algo negativo. Eu acho que não, na minha leitura não. Para eles, sim. A história do Brasil, numa visão indigenamente contracolonial, é também a história dos corpos infantis violados desde o período colonial, no Império e na República e que ainda continua sendo. Essa parte da história está sendo negada. E, ao mesmo tempo, é a história da resistência de corpos infantis que, no século XVI, na colônia, que no império, que na república, e nos dias de hoje, mantêm-se ainda vivos, pulsantes, que são muitos de nossos bisavôs, bisavós dos nossos ancestrais antigos. Isso talvez seja o que eu poderia dizer nessa finalização.

 

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[45:43]

Narração Luiza: Esse foi o segundo episódio do nosso podcast. Trabalho, sistema econômico, parecem palavras distantes de infância, né? Pois é, mas historicamente as relações de trabalho e o sistema econômico influenciam diretamente no nosso tema central, a violência sexual que atinge diariamente crianças e adolescentes. E como ouvimos aqui, as crianças também possuem uma grande capacidade de mobilização. E aí, criou coragem? Fica com a gente. No próximo episódio, a gente vai conhecer as histórias do Levante Secundarista, um movimento importante que marcou o ano de 2015. Então, até a próxima!

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